A psicanálise é apenas sobre sexo

Embora Freud tenha popularizado o termo “libido”, ele não pretendia que o termo fosse aplicado apenas ao desejo sexual. Na psicanálise, a libido refere-se à energia ou força vital que impulsiona todo o comportamento humano, não apenas as paixões sexuais. Embora a luxúria geralmente conduza o comportamento, não é o motivador de todas as ações. A psicanálise se concentra em muitos outros aspectos da experiência que impulsionam o comportamento. Quando a terapia psicanalítica é recomendada? A psicanálise é mais adequada para alguns pacientes do que para outros. É particularmente útil para aquelas pessoas que desejam desenvolver uma compreensão profunda de seus motivadores internos. Essa terapia também funciona bem para aqueles que desejam dar sentido às suas experiências e lidar com o cerne do dilema, e não apenas com suas manifestações. O paciente em psicanálise normalmente deve passar por um tratamento de longo prazo, o que indica disposição e compromisso com o que às vezes pode ser um doloroso processo de crescimento.

Tratamento Psicanalítico: Metas e Objetivos

Um dos principais objetivos da psicanálise é ajudar os pacientes a identificar os pensamentos, comportamentos e desejos ocultos que estão criando problemas em sua existência cotidiana. O objetivo é ajudar os pacientes a entender as questões que causaram problemas profundamente enraizados e uma perspectiva desadaptativa da vida. A psicanálise ajuda o paciente a adotar um novo ponto de vista. Essa nova atitude pode gerar mudanças e crescimentos significativos na vida do paciente. Psicanálise: mitos e falsos estereótipos Numerosos falsos estereótipos e mitos estão associados à psicanálise. O público em geral normalmente mantém uma visão desatualizada da psicanálise, talvez recolhida de retratos de psicanalistas na televisão ou no cinema, que está longe de ser precisa. Alguns dos estereótipos mais comuns da psicanálise incluem: A psicanálise dura para sempre Embora seja verdade que o tratamento psicanalítico leva mais tempo do que outros tipos de terapias, o paciente não se submete ao tratamento para sempre. O objetivo do tratamento é ajudar os pacientes a desenvolver uma compreensão mais profunda de seus pensamentos, sentimentos e memórias inconscientes para gerar crescimento permanente e alterações na personalidade. O profundo nível de compreensão exigido na psicanálise não se desenvolve da noite para o dia, e é por isso que um paciente pode estar em terapia por vários anos.

E o que define a prática clínica da psicanálise?

E o que define a prática clínica da psicanálise? O último ponto destacado talvez seja o mais significativo dentre os três e demarca uma especificidade do tratamento psicanalítico: ele ocorre tendo a transferência como seu motor, o que somente é possível ao preço do abandono não somente da hipnose e outras formas de sugestionabilidade, mas também, abandono de um ideal de sujeito definido positivamente. A transferência estabelece um modo de vínculo baseado nos afetos que são projetados na figura do analista a partir da suposição de saber que é feita sobre ele. Por isso, além da psicanálise ser uma cura através da fala, Freud a define também como uma transformação através do amor. Na cena analítica, não estamos destinados a apenas rememorar os fatos de nossa história, mas a repeti-los, e é justamente por ser uma experiência afetiva que seus efeitos ultrapassam os limites da consciência e produzem efeitos inconscientes. Mas isso só pode ocorrer através de um movimento específico de abstinência e de trabalho sobre o eu do analista. Passar do seu eu para o lugar do analista é uma operação que demanda um cuidado especial destinado à contratransferência, ou seja, a forma como o analista se coloca na cena transferencial envolve um modelo de destituição de suas fantasias e interesses pessoais que demanda formação, análise e supervisão. O lugar do analista que nos é designado por Freud constitui-se ao preço do abandono de formas diretas de influência que levariam o analisando a um lugar específico construído nas miragens do analista a respeito do que seria saúde, desenvolvimento, sucesso ou o que quer que o valha. O desejo do analista não deve ser o de que o analisando torne-se algo que componha uma cartilha de saúde ou normalidade: o desejo do analista é desejo de análise, cabendo ao analisando fazer disso a síntese que lhe for mais eticamente alinhada ao seu desejo inconsciente. Logo, se a influência do analista tornar-se direcionada a um resultado previamente escolhido, sua técnica será sugestiva ao invés de analítica. Como funciona o tratamento psicanalítico? Numerosas suposições fundamentam as teorias por trás da psicanálise. Em primeiro lugar, existem três funções dentro da personalidade de todos – o id, o ego e o superego. O id, compreendendo tanto o instinto quanto os impulsos fundamentais básicos, é energia inconsciente; também inclui tendências agressivas e sexuais. A mente consciente, ou o ego, serve para manter o id sob controle, exercendo uma influência moderadora. Finalmente, o superego representa a realidade externa, incluindo pensamentos, sentimentos e comportamentos conscientes, que refletem os costumes e valores dos pais ou da sociedade. Esses três componentes formam o modelo estrutural do que conhecemos como personalidade. A interação entre os três apresenta uma luta pelo domínio, que ocorre dentro de cada pessoa. O tratamento psicanalítico ajuda a aliviar as tensões subjacentes que ocorrem entre o id, o ego e o superego. Na tentativa de equilibrar essas três funções mentais, os pacientes devem revelar seus pensamentos e sentimentos inconscientes. Na maioria das terapias psicanalíticas tradicionais, o paciente se deita em um sofá enquanto o terapeuta se senta atrás do paciente para evitar contato visual. Essa posição ajuda o paciente a se sentir confortável, para que ele possa chegar a um nível mais íntimo de discussão com o psicoterapeuta. A terapia psicanalítica normalmente compreende um curso de tratamento de longo prazo. Os clientes geralmente se encontram com seu terapeuta pelo menos uma vez por semana e podem permanecer em terapia por vários anos. Técnicas Psicanalíticas Uma variedade de técnicas terapêuticas é usadas durante a psicanálise, todas elas empregadas na tentativa de maximizar o insight e ganhar consciência do comportamento do paciente. Alguns dos métodos mais populares incluem: Análise dos sonhos — Na psicanálise, a interpretação dos sonhos é usada para revelar pensamentos inconscientes. Freud pensava que ideias e sentimentos reprimidos afloravam à superfície da mente por meio dos sonhos. No entanto, o conteúdo dos sonhos é frequentemente alterado. Portanto, o psicanalista deve ajudar o paciente a interpretar e compreender a substância do sonho para descobrir seus significados ocultos. Associação livre — Durante a associação livre, o paciente é encorajado a falar sobre qualquer coisa que vier à mente livremente. O psicanalista pode ler uma lista de palavras aleatórias e o paciente simplesmente responde com as primeiras associações que ocorrem. Memórias reprimidas muitas vezes surgem durante o processo de associação livre. Interpretação — O psicanalista ajuda o paciente a explorar memórias e narrativas pessoais em detalhes e, ao fazê-lo, analisa-as. O terapeuta procura alguns temas comuns nas histórias do paciente. Um deles, o chamado “deslize freudiano”, ocorre quando os pacientes acidentalmente revelam algo importante durante uma conversa aleatória. O terapeuta psicanalítico fornece uma interpretação da escolha inadvertida de palavra ou frase do paciente. Transferência – Os pacientes se envolvem em transferência quando transferem sentimentos que tiveram por alguém em seu passado para o presente. Às vezes, a transferência ocorre entre o paciente e o terapeuta. Os pacientes podem aplicar certos sentimentos em relação ao terapeuta que realmente se relacionam com alguém de seu passado.

Quais os critérios para definirmos se uma prática é ou não “psicanálise”?

Se versões distintas são admitidas no interior do campo psicanalítico, quais seriam os critérios para que o movimento psicanalítico tenha reconhecido determinadas releituras em detrimento de outras? Em primeiro lugar, o campo psicanalítico parte do pressuposto de um aparelho psíquico dividido e em conflito (tanto interno quanto em relação à realidade ou aos outros). Logo, não são admitidas como “psicanalíticas” versões holísticas ou integrativas do sujeito, que visem a harmonia de um todo ou a superação das divisões para a constituição de uma plenitude do ser. Em segundo lugar, e em consequência disso, também é fundamental que nesse processo de divisão, a prioridade seja dada ao inconsciente. Dito de outra forma, faz-se necessário que seja respeitada a tese freudiana do determinismo psíquico e da sobredeterminação do inconsciente. Mesmo as decisões tidas como conscientes se dão após os movimentos desejantes do inconsciente e recortadas pelas censuras e defesas pré-conscientes. Logo, em qualquer versão da psicanálise, repete-se o ato fundador de Freud de descentramento do sujeito que reafirma que o “eu não é senhor em sua morada”. Por fim, mas não menos importante, a psicanálise é obrigatoriamente laica. Sua inserção maior no campo do pensamento se dá na história de movimentos científicos, que se asseguram de um método e que se localizam no campo da linguagem intervindo em sujeitos no intervalo entre o nascimento e a morte. Pressuposições ou hipóteses para além ou aquém desse intervalo (a vida intra-uterina, vidas passadas, o espiritual ou outras formas sacras ou transcendentais) não são aceitas no interior da disciplina psicanalítica. Lembremos, como exemplo maior, que a psicologia analítica de Carl Gustav Jung foi criada justamente a partir da impossibilidade de inclusão no meio psicanalítico de hipóteses que envolviam concepções integrativas e/ou transcendentais. Poderíamos dizer ainda que essas três premissas metodológicas se desdobram em algumas orientações técnicas igualmente importantes que seriam: a prevalência da fala como modo de atuação, a impossibilidade de redução do psíquico ao orgânico e o abandono da hipnose e da sugestionabilidade como meio terapêutico. Vejamos esses três pontos de forma mais detalhada: quando Freud afirma que a psicanálise se constitui como uma “cura através da fala”, uma “talking cure”, coloca-se em ação uma aposta de que seu meio de ação será o da fala e que seu método será organizado em torno de operações derivadas do campo da linguagem. Assim, não são aceitas no campo (por serem contraditórias ao método psicanalítico) abordagens que incluam ações diretas sobre o corpo (exercícios de relaxamento, massagens, acupunturas, ervas medicinais e afins) ou sobre o ambiente (tarefas designadas para a mudança de fatores do quotidiano, orientações do terapeuta dadas diretamente às pessoas que compõem a rede de contatos do analisando ou a presença do analista no convívio do analisando para fins terapêuticos). Em relação à impossibilidade de redução do psiquismo, a psicanálise trabalha alinhada com uma orientação da concepção geral de clínica: cessa a causa, cessa o efeito, logo, o tratamento deve ocorrer no mesmo âmbito da causa. Por considerar os conflitos psíquicos na causalidade dos sofrimentos e sintomas que são aptos ao tratamento psicanalítico[1], a psicanálise tem por decisão metodológica evitar a redução do psiquismo ao nível do funcionamento orgânico, especialmente, o funcionamento cerebral. Isso não quer dizer que a psicanálise não possa ser coadjuvante ou ter tratamentos medicamentosos como uma estratégia clínica suplementar. No entanto, suas teses obrigatoriamente não reduzem o psiquismo à lógica do funcionamento neuronal ou a psicopatologia a uma condição neurofisiológica. Em casos de trabalhos conjuntos, vale a regra da interdisciplinaridade ou da multidisciplinaridade, sem que haja necessidade de convergência das hipóteses causais (ou mesmo diagnósticas).

Afinal o que Psicanalise?

Analisando detalhadamente a citação de Freud, podemos dizer que sua definição inicial é a de pensar a psicanálise como um método duplo de investigação. Dito de outra forma, a psicanálise seria um método de pesquisa e um método de tratamento que é derivado de um modo de pesquisa, ou ainda, em sua face de tratamento clínico implica a coincidência entre a investigação como um modo de promoção do cuidado à saúde mental. Enquanto método de pesquisa, a psicanálise teria como pressuposto fundamental a tese de que o inconsciente determina nossos modos de ser, nossas escolhas e nossos meios de repetição que repercutem tanto nas nossas características pessoais quanto no nosso comportamento. Logo, tudo o que dizemos, as formas como agimos e, inclusive, nossas decisões conscientes seriam diretamente influenciadas por uma outra lógica de pensamento, que chamamos de inconsciente. Por ter (ou ser) outra lógica de pensamento, o inconsciente não pode ser compreendido como apenas a falta de consciência, como se fosse um pensamento que obedecesse às mesmas regras porém que ocorreria sem o auxílio ou fora do alcance da consciência. Se bem entendido, é justamente por isso que a psicanálise, em suas diferentes vertentes, não utiliza o conceito de “subconsciente” (para evitar uma má compreensão de uma dupla consciência, ou de uma consciência por baixo da consciência). Contudo, se esse pensamento não segue as mesmas regras, se ele não se organiza da mesma forma, ele precisa portanto de outros meios para ser abordado. É nesse sentido que, antes de tudo, a psicanálise se oferece como um meio de pesquisa e investigação, ou, mais especificamente, como um método de escuta. Para o psicanalista, a utilização do método psicanalítico implica “escutar” algo, seja um fenômeno social que é determinado por elementos discursivos que precisam ser pesquisados, que não se mostram em sua superfície consciente; seja um objeto da cultura, que implica várias linhas de associações que se estendem para além de uma face superficial; seja um sofrimento ou sintoma, que se repete em suas formas de determinação para além do que pode ser compreendido pela consciência. Qual a relação entre pesquisa e psicanálise? É justo que chamemos de psicanálise o uso do método que visa escutar elementos inconscientes de fenômenos ou processos sociais, em sua face individual ou coletiva, desde que seja orientada por uma concepção de inconsciente como determinante em relação ao pensamento consciente. Isso nos dá uma visão do que seria a pesquisa psicanalítica, mas não necessariamente do que seria sua aplicação clínica, ou seja, da psicanálise como um método de tratamento. Nesse caso, a investigação parte do mesmo princípio, mas com outra aplicabilidade e com uma ligeira mudança, mas que faz toda a diferença: na investigação clínica, o analista oferece sua escuta, mas a investigação depende de um processo ativo de produção de material por parte do analisando. Freud deu a esse processo o nome de “associação livre”. Esse tratamento, que faz coincidir a busca pela causalidade inconsciente com o tratamento oferecido poderia ser compreendido como um tratamento baseado na verdade e seus modos de transformação, ou, dito de outra forma, num encontro trágico consigo mesmo, já que defrontar-se com o desejo inconsciente implica também em estar frente-a-frente com tudo aquilo que habita em nós e que faz conflito com os aspectos éticos, estéticos e morais de nosso eu. Ao associar livremente, o analisando ou analisanda se propõe a suspender quaisquer formas de seleção de material, de julgamento ou escolha consciente sobre o que será dito, o que Freud chamou de “regra de ouro” do método psicanalítico. O ou a psicanalista entra nesse jogo com uma contrapartida, que seria um modo especial de escuta que denominamos “atenção flutuante”. Se para o analisando a regra é falar o que vier à cabeça, para o analista a regra seria diferente, Freud a resumiu como o dever de “flutuar sem submergir”. Isso porque a escuta do analista não se orienta necessariamente pelo sentido do que é dito, mas pela intensidade dos afetos que marcam o que é dito. O/a analista, portanto, flutua no dizer do seu analisando pontuando as lacunas, indicando as repetições, colocando questões que levam o analisando ou analisanda a também defrontarem-se com a face inconsciente de seu discurso. Revisando a citação de Freud, podemos então dizer que existe pesquisa em psicanálise que não é clínica, mas que não existe clínica em psicanálise que não seja também um modo de pesquisa. Da mesma forma, podemos concluir que quando falamos de “psicanálise” estamos falando de um campo de atuação científica que abarca essas atividades de clínica e pesquisa e, em parte, provem daí uma certa dificuldade de compreensão da separação entre esses âmbitos da experiência, sobretudo no que diz respeito à formação. O motivo disso é que pressupõe-se que o método de pesquisa com base na disciplina psicanalítica possa ser exercido por pesquisadores de outras áreas, sem uma formação específica que lhes autorize a nomeação de psicanalistas. Porém, o mesmo não é válido quando se trata da atuação clínica, que demandaria a formação de um analista para o exercício da prática. Segundo Freud, a formação do analista se daria através de um tripé composto por estudo teórico, atendimentos supervisionados e um percurso próprio de análise do/da analista. E é justamente quando se trata de formação que podemos perceber o quanto o campo da psicanálise é mais vasto do que supomos inicialmente: muito embora tenhamos um ponto de partida comum na obra de Freud, o que nos permite retornar a textos fundamentais e a um arcabouço teórico em volta dos artigos sobre metapsicologia, as diferentes interpretações, apostas epistemológicas e desenvolvimentos teóricos apontam para psicanálises diversas a partir de leituras que marcaram historicamente o campo. Assim, os autores que chamamos de pós-freudianos recortam o universo conceitual freudiano com critérios diferentes, amarrando a trama conceitual através de estruturas diversas de compreensão e, por consequência, de ação e de formação. Interpretar é uma ação diferente se seguimos a leitura lacaniana, kleiniana, winnicottiana, ferencziana e etc.. Se as ações não são as mesmas, os caminhos

O que é a psicanálise?

A psicanálise já havia se tornado razoavelmente conhecida na década de 1920, sobretudo na Europa, quando a Enciclopédia Britânica solicitou ao próprio Sigmund Freud, enquanto criador e principal propagador do método, a escrita de dois verbetes explicando o que seria a psicanálise (e, ainda, a teoria da libido). Vejamos então, nas palavras de Freud, o que seria a psicanálise e, a partir disso, tentaremos aprofundar a definição e compreender o que gera tanta confusão na apreensão do termo, nos limites de sua prática e no que concerne a sua aplicabilidade: “PSICANÁLISE é o nome de (1) um procedimento para investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica.” (FREUD, 1923/2006, p. 253). Quais as diferenças entre Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria? Quais as diferenças entre a Psicanálise, a Psicologia e a Psiquiatria? Essa é uma pergunta muito pertinente, sobretudo porque ela interessa por dois ângulos muito diferentes: a pergunta interessa àqueles que procuram uma forma de atendimento clínico que esteja de acordo com o seu sofrimento ou os seus propósitos, mas ela interessa também do ponto de vista formativo, sobre quais profissionais nos tornamos ao escolhermos um desses caminhos. Faz-se necessário, portanto, desdobrarmos a questão da diferença entre esses campos, suas relações, aproximações e afastamentos levando em consideração suas características epistemológicas e metodológicas. Para respondermos a esses dois públicos com dúvidas específicas, vamos resgatar o que cada um desses campos tem de particular, o que os torna singulares e o que repercute em práticas que lhe são próprias. 1. O que é psiquiatria? Comecemos nosso percurso pela psiquiatria. Em termos gerais, a psiquiatria é uma especialidade médica, com a nomeação reservada aos e às profissionais devidamente reconhecidos pelos conselhos regionais de medicina. Sua formação se dá através de programas de residência que podem ocorrer em universidades e hospitais, desde que os programas sejam regulados pela Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS). Na maioria dos casos, a residência em psiquiatria é um programa de cerca de 60 horas semanais ao longo de três anos que mescla o estudo teórico com a prática clínica em diferentes âmbitos de atuação (hospital geral, hospital psiquiátrico, CAPS, CAPS-AD, Unidades básicas de saúde e afins) e em vários níveis de complexidade (baixa, média e alta complexidade). Sendo uma especialidade médica voltada para a promoção da saúde mental, a psiquiatria é uma profissão regulamentada pelo Estado e sua formação restrita a profissionais formados em medicina. Cabe à psiquiatria, no exercício de suas ações, a prática da psicoterapia, a prescrição medicamentosa e o desenvolvimento de ações de promoção e reabilitação da saúde. Dentre essas opções, apenas a prescrição de medicamentos é reservada ao médico, independente de sua especialidade em psiquiatria ou não, já que as medicações chamadas psicofármacos podem ser receitadas também por médicos de outras especialidades, dentro dos limites da ética relativa à sua prática e de sua competência e responsabilidade técnica. Isso significaria que a prática da psiquiatria seria semelhante às da psicologia e da psicanálise e que sua única diferença seria o direito à prescrição de medicamentos? Na verdade, há mais diferenças do que apenas essa e, para que possamos compreendê-las, convém retomarmos alguns elementos importantes em sua constituição. Tradicionalmente, a história da psiquiatria é marcada pela apropriação que o campo da medicina fez em relação aos cuidados direcionados à loucura, mas também na constituição de suas formas de controle e de explicação de sua causalidade para fins de prevenção. Seguindo a lógica que orienta o saber médico enquanto disciplina de que faz-se necessário cessar a causa para poder cessar o efeito, a psiquiatria se desdobrou em (1) uma busca pelas causas de sofrimentos muito agudos, (2) pela construção de dispositivos de cuidado sobre os sintomas relativos à racionalidade e ao comportamento humano e (3) na formulação de políticas de controle para a contenção da loucura, visando à proteção social. Em termos de busca da causalidade, a psiquiatria delimitou ao longo de sua história duas linhas gerais de raciocínio. Segundo a linha que podemos chamar de reducionismo biológico, a psiquiatria buscaria determinar as linhas gerais de determinação das diferentes psicopatologias através da compreensão do funcionamento cerebral. Vale ressaltar que o uso do termo reducionismo não se dá de forma pejorativa, mas sim para descrever a metodologia de redução das funções psíquicas ou as formas de seu abalo (déficit, aumento, inibição, hipoatividade etc.) ao modo do funcionamento cerebral. Essa é a base da neurociência contemporânea, que visa a descrição dos fenômenos psicológicos através de um modelo de funcionalidade neuronal. Logo, os saberes relativos à neuroanatomia, mas também à neurofisiologia e à dinâmica do sistema nervoso serviriam de modelo explicativo para o desenvolvimento de estratégias de intervenção diretas sobre o funcionamento cerebral, que resultam, indiretamente, em intervenções sobre determinados comportamentos localizados numa racionalidade diagnóstica como problemas-alvo. Muito antes dos desenvolvimentos das pesquisas através de neuroimagens, o modelo de reducionismo biológico já estava presente na base do raciocínio do localizacionismo psíquico contemporâneo a Freud – tese segundo a qual a cada função psíquica ou um conjunto restrito de funções corresponderia uma área ou giro do cérebro – e do paralelismo psicofísico –, o conjunto de hipóteses teóricas através das quais a cada função psíquica corresponderia uma ação no plano corporal, sendo a energia psíquica o meio de transmissão elétrica entre esses dois pólos da existência. A título de ilustração, poderíamos ainda destacar as cirurgias públicas de extração da pedra da loucura, tal como retratado por Hieronymus Bosch por volta do ano de 1480, ou das tentativas de intervenção sobre os fluídos corporais através do magnetismo animal que, a partir dos trabalhos de Franz Anton Mesmer, influenciaram profundamente os princípios da medicina europeia desde a publicação de sua tese em 1766. Concorrentemente a esse movimento de reducionismo biológico, temos na história da psiquiatria uma tradição de prática e pensamento ligada ao