Analisando detalhadamente a citação de Freud, podemos dizer que sua definição inicial é a de pensar a psicanálise como um método duplo de investigação. Dito de outra forma, a psicanálise seria um método de pesquisa e um método de tratamento que é derivado de um modo de pesquisa, ou ainda, em sua face de tratamento clínico implica a coincidência entre a investigação como um modo de promoção do cuidado à saúde mental. Enquanto método de pesquisa, a psicanálise teria como pressuposto fundamental a tese de que o inconsciente determina nossos modos de ser, nossas escolhas e nossos meios de repetição que repercutem tanto nas nossas características pessoais quanto no nosso comportamento. Logo, tudo o que dizemos, as formas como agimos e, inclusive, nossas decisões conscientes seriam diretamente influenciadas por uma outra lógica de pensamento, que chamamos de inconsciente. Por ter (ou ser) outra lógica de pensamento, o inconsciente não pode ser compreendido como apenas a falta de consciência, como se fosse um pensamento que obedecesse às mesmas regras porém que ocorreria sem o auxílio ou fora do alcance da consciência. Se bem entendido, é justamente por isso que a psicanálise, em suas diferentes vertentes, não utiliza o conceito de “subconsciente” (para evitar uma má compreensão de uma dupla consciência, ou de uma consciência por baixo da consciência).
Contudo, se esse pensamento não segue as mesmas regras, se ele não se organiza da mesma forma, ele precisa portanto de outros meios para ser abordado. É nesse sentido que, antes de tudo, a psicanálise se oferece como um meio de pesquisa e investigação, ou, mais especificamente, como um método de escuta. Para o psicanalista, a utilização do método psicanalítico implica “escutar” algo, seja um fenômeno social que é determinado por elementos discursivos que precisam ser pesquisados, que não se mostram em sua superfície consciente; seja um objeto da cultura, que implica várias linhas de associações que se estendem para além de uma face superficial; seja um sofrimento ou sintoma, que se repete em suas formas de determinação para além do que pode ser compreendido pela consciência.
Qual a relação entre pesquisa e psicanálise?
É justo que chamemos de psicanálise o uso do método que visa escutar elementos inconscientes de fenômenos ou processos sociais, em sua face individual ou coletiva, desde que seja orientada por uma concepção de inconsciente como determinante em relação ao pensamento consciente. Isso nos dá uma visão do que seria a pesquisa psicanalítica, mas não necessariamente do que seria sua aplicação clínica, ou seja, da psicanálise como um método de tratamento. Nesse caso, a investigação parte do mesmo princípio, mas com outra aplicabilidade e com uma ligeira mudança, mas que faz toda a diferença: na investigação clínica, o analista oferece sua escuta, mas a investigação depende de um processo ativo de produção de material por parte do analisando. Freud deu a esse processo o nome de “associação livre”. Esse tratamento, que faz coincidir a busca pela causalidade inconsciente com o tratamento oferecido poderia ser compreendido como um tratamento baseado na verdade e seus modos de transformação, ou, dito de outra forma, num encontro trágico consigo mesmo, já que defrontar-se com o desejo inconsciente implica também em estar frente-a-frente com tudo aquilo que habita em nós e que faz conflito com os aspectos éticos, estéticos e morais de nosso eu. Ao associar livremente, o analisando ou analisanda se propõe a suspender quaisquer formas de seleção de material, de julgamento ou escolha consciente sobre o que será dito, o que Freud chamou de “regra de ouro” do método psicanalítico. O ou a psicanalista entra nesse jogo com uma contrapartida, que seria um modo especial de escuta que denominamos “atenção flutuante”. Se para o analisando a regra é falar o que vier à cabeça, para o analista a regra seria diferente, Freud a resumiu como o dever de “flutuar sem submergir”. Isso porque a escuta do analista não se orienta necessariamente pelo sentido do que é dito, mas pela intensidade dos afetos que marcam o que é dito. O/a analista, portanto, flutua no dizer do seu analisando pontuando as lacunas, indicando as repetições, colocando questões que levam o analisando ou analisanda a também defrontarem-se com a face inconsciente de seu discurso.
Revisando a citação de Freud, podemos então dizer que existe pesquisa em psicanálise que não é clínica, mas que não existe clínica em psicanálise que não seja também um modo de pesquisa. Da mesma forma, podemos concluir que quando falamos de “psicanálise” estamos falando de um campo de atuação científica que abarca essas atividades de clínica e pesquisa e, em parte, provem daí uma certa dificuldade de compreensão da separação entre esses âmbitos da experiência, sobretudo no que diz respeito à formação. O motivo disso é que pressupõe-se que o método de pesquisa com base na disciplina psicanalítica possa ser exercido por pesquisadores de outras áreas, sem uma formação específica que lhes autorize a nomeação de psicanalistas. Porém, o mesmo não é válido quando se trata da atuação clínica, que demandaria a formação de um analista para o exercício da prática.
Segundo Freud, a formação do analista se daria através de um tripé composto por estudo teórico, atendimentos supervisionados e um percurso próprio de análise do/da analista. E é justamente quando se trata de formação que podemos perceber o quanto o campo da psicanálise é mais vasto do que supomos inicialmente: muito embora tenhamos um ponto de partida comum na obra de Freud, o que nos permite retornar a textos fundamentais e a um arcabouço teórico em volta dos artigos sobre metapsicologia, as diferentes interpretações, apostas epistemológicas e desenvolvimentos teóricos apontam para psicanálises diversas a partir de leituras que marcaram historicamente o campo. Assim, os autores que chamamos de pós-freudianos recortam o universo conceitual freudiano com critérios diferentes, amarrando a trama conceitual através de estruturas diversas de compreensão e, por consequência, de ação e de formação. Interpretar é uma ação diferente se seguimos a leitura lacaniana, kleiniana, winnicottiana, ferencziana e etc.. Se as ações não são as mesmas, os caminhos da formação e os modos de reconhecimento da mesma também não. Logo, quando falamos de “psicanálise” para se referir a uma leitura ou decisão teórica, estamos fazendo uma concessão de síntese do termo, já que, mais corretamente, a psicanálise é uma disciplina que comporta e abarca versões por vezes contrárias ou contraditórias (exemplo semelhante quando falamos em “a” filosofia ou “a” ciência).